quinta-feira, 24 de maio de 2012

Uma esperança contra a impunidade

O presidente do Senado, José Sarney, apresenta projeto de lei para aumentar as penas para crimes de assassinatos, mas, sem pressão da sociedade, pode ficar parado por longos anos

Por Henrique Manreza/Brasil Econômico

O delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury cristalizou-se na história recente do Brasil como a principal estrela dos grupos que torturavam nos porões da ditadura civil-militar. Guerrilheiros capturados, indefesos, eram barbarizados para revelar pontos de encontros com seus companheiros. Outras vezes eram devastados fisicamente por puro sadismo. No governo do presidente Ernesto Geisel, da ala moderada, chamada de Sorbonne, a cúpula militar teve de refreá-lo, pois, como alguns militares, estava fora de controle — como se tivesse licença para matar, ao estilo de James Bond, mas sem a elegância deste. Entretanto, antes de Geisel, o formulador da distensão-abertura, Fleury, que viajava de Sul a Norte do país em busca de torturáveis, era protegido pelo governo. As gestões de Costa e Silva e Emilio Garrastazu Medici o protegeram e o financiaram — quando morreu afogado (suspeita-se de “queima” de arquivo, porque sabia e falava demais), tinha um alto padrão de vida — durante anos. Era delegado mas comportava-se como um “coronel sem farda”. Era temido até por policiais civis e militares. Por conta de seu envolvimento numa execução articulada pelo Esquadrão da Morte, a Justiça decretou sua prisão preventiva em 1973. Imediatamente, o governo Medici manipulou o Congresso Nacional e aprovou-se a Lei nº 5.941. A Lei Fleury, como ficou conhecida, “permitia a todos os réus primários e de bons antecedentes responder ao julgamento em liberdade, inclusive se fossem condenados em primeira instância ou se seus processos não tivessem sido julgados em instância superior”. Com base nessa lei, Fleury foi absolvido, de modo unânime, pelo 2º Tribunal do Júri de São Paulo, em 1974. Como prêmio pelos serviços prestados à ditadura, o Torquemada dos trópicos “foi condecorado como o policial do ano”. Na semana passada, o octogenário presidente do Senado, José Sarney (PMDB), apresentou um projeto de lei para corrigir insuficiências do Código Penal, do Código de Processo Penal, da Lei de Execução Penal, da Lei dos Crimes Hediondos e do Código de Trânsito Brasileiro. O objetivo central é reduzir a violência e conter a impunidade.
Ao apresentar o projeto, Sarney divulgou informações e dados, embora conhecidos e repisados, estarrecedores. O Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde revela que 38.650 brasileiros foram assassinados em 2011 — “mais de 105 homicídios a cada dia”. O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, citado pelo presidente do Senado, registra que “o Brasil detém a terceira pior taxa de homicídios por cem mil habitantes na América Latina, ficando atrás apenas da Venezuela e da Colômbia, considerando-se a taxa brasileira de 22,7. Em termos mundiais, o Brasil ocupa a desonrosa 24ª posição do ranking mundial”.
O Mapa da Violência, divulgado pelo Instituto Sangari (às vezes, contestado), sustenta que, entre 1980 e 2010, 1.091.125 brasileiros foram vítimas de homicídio. “Em números relativos, a taxa de homicídios por cem mil habitantes saltou de 11,7 em 1980 para 26,2 em 2010. É um aumento real de 124% no período, ou de 2,7% ao ano”, diz Sarney. Mais de 4.200 mulheres foram assassinadas em 2010.
Mata-se porque a violência “pertence” ao mundo dos animais — irracionais e racionais. Mas o excesso de homicídios revela que sua principal causa é a impunidade. O assassino (inclusive o reincidente) sabe que as leis vigentes podem até levá-los à prisão, mas tem informação suficiente sobre suas fragilidades e atenuantes. O indivíduo mata e, pouco tempo depois, está nas ruas, às vezes matando de novo — como um caso recente ocorrido em Goiânia. Um homem matou quatro pessoas havia sido liberado pela Justiça, que informa ter seguido a lei, e matou a quinta, uma publicitária, que, como seus pais, havia acreditado na recuperação do assassino praticamente serial.
Considerado que o crime contra a vida é o mais grave de todos, Sarney nota, com acerto, que o assassino precisa entender — para temer a lei — que, ao matar uma pessoa, ficará muito tempo preso. A prisão, sugere o presidente do Senado, deve funcionar, de algum modo, como uma morte simbólica. Penalizado severamente pela Justiça, o criminoso possivelmente terá receio de cometer outros assassinatos. Sabe-se que projetos semelhantes foram apresentados no Senado, com pontos contestados por aqueles que defendem os direitos humanos, mas, como presidente da instituição, Sarney tem um peso decisivo. Critica-se muito juízes, desembargadores e ministros, sugerindo-se que são lenientes com a impunidade e que suas decisões beneficiam criminosos perigosos ao convívio social. O problema é que os juízes aplicam as leis que existam, ou seja, leis frouxas, tolerantes com a criminalidade, possivelmente porque, numa interpretação equivocada, intelectuais conectam em termos imperativos crime e miséria — quando a pobreza não leva necessariamente ao roubo e ao assassinato.
Para combater a impunidade e facilitar o trabalho dos magistrados, que precisam de leis rígidas e precisas, Sarney fez uma proposta realista. O objetivo é deixar o assassino mais tempo na cadeia e, com isso, desestimular o crime. Citemos, a seguir, seus principais trechos.
I — A pena do crime de homicídio simples, hoje de 6 a 20 anos, seria elevada nos seus limites mínimo e máximo. Se a proposta for aprovada, o crime será punido com a pena de reclusão, de 8 a 24 anos.
Sarney propõe a elevação da pena do crime de homicídio culposo (quando não se tem intenção de matar). Hoje, este crime é punido com a pena de detenção, de 1 a 3 anos. O presidente do Senado sugere, dada a gravidade do crime, a pena de reclusão, de 2 a 5 anos.
O crime de homicídio na condução de “veículo automotor” é penalizado hoje com “detenção” de 2 a 4 anos. Se a proposta for aprovada, a pena será de “reclusão” de 3 a 6 anos. O crime de lesão corporal seguida de morte passará a ser penalizado com reclusão — de 6 a 15 — e não, como hoje, de 4 a 12 anos.
II — O homicídio simples passará a ser tratado como crime hediondo, elevando-se, por conseguinte, s quantidade mínima de cumprimento da pena no regime fechado necessária à progressão e ao cálculo de outros benefícios previstos na Lei de Execução Penal.
III — Sarney frisa que, em caso de flagrante por crime de lesão corporal seguida de morte, homicídio ou latrocínio, na forma tentada ou consumada, a prisão deverá ser necessariamente convertida em preventiva, impedindo-se a aplicação isolada de medidas cautelares não restritivas da liberdade.
IV — O projeto prevê que, em relação às citadas infrações penais, mesmo sem flagrante, o juiz deverá decretar a prisão preventiva com base na ofensa à ordem pública, tendo sido criada expressa fórmula de presunção legal. “Ora”, frisa Sarney, “nenhum crime produz sobre o tecido social efeito mais perturbador do que o assassinato de alguém”.
V — Na fase de pronúncia e no momento da sentença condenatória, reza o projeto, o juiz deverá necessariamente renovar o decreto de prisão preventiva com fundamento na ofensa à ordem pública.
VI — No caso do crime de homicídio culposo, mesmo considerando o comportamento negligente do autor e mais elevado o grau de culpa, a lei atual convida o juiz a aplicar uma simples pena alternativa. O novo projeto é mais rigoroso: “O critério de quatro anos para substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos passará a valer tanto para crimes dolosos [quando há culpa evidente] quanto culposos”.
VII — A maioria dos países é extremamente exigente no que se refere aos crimes hediondos, mas o Brasil é relativamente tolerante. O projeto de Sarney é duro: “Em relação aos crimes hediondos, proíbe-se a concessão e liberdade provisória ou de outra medida cautelar que não a prisão preventiva ou temporária, salvo se cumulada com uma dessas modalidades de prisão”. O projeto eleva “significativamente os parâmetros para a concessão de progressão de regime e livramento condicional em relação a tais figuras delituosas”.
VIII — “O teor da Súmula nº 715 do Supremo Tribunal  Federal receberá abrigo no texto da Lei de Execução Penal, de modo que os benefícios ali previstos sejam calculados com base na soma de todas as penas impostas na condenação, e não pena unificada para efeito do limite imposto no artigo 75 do Código Penal”.
IX — O projeto oferece “aos juízes a possibilidade de enquadramento da conduta  como dolo eventual na situação em que o motorista se encontra embriagado ou em que dirige o veículo em péssimas condições de segurança ou, ainda, imprimindo velocidade superior à máxima permitida no locaol”.
O que Sarney está oferecendo à sociedade e, sobretudo, aos magistrados é um instrumental mais rígido para punir o crime e conter a impunidade. No seu pronunciamento, Sarney ressalvou que um projeto de sua autoria — “que regula a assistência às famílias da vítima de violência” — foi aprovado há sete anos, no Senado, mas está parado na Câmara dos Deputados. Portanto, a sociedade civil deve pressionar o Congresso para aprovar o projeto que batalha contra a impunidade. 

Fontew: Jornal Opção

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