domingo, 13 de maio de 2012

Quando ser neutro significa ser cúmplice

RICARDO NOBLAT é jornalista, foi editor do jornal "Correio Braziliense", mantém um blog que leva seu nome no globo.com

Os jornalistas aprendem nos bancos escolares que títulos de notícias e notícias devem se limitar a apresentar os fatos da maneira mais neutra possível. Caberá aos leitores, e somente a eles, tirarem suas próprias conclusões.

A regra faz sentido? Acho que sim. Mas como toda regra ela comporta exceções. Abri várias ao longo dos meus quase 45 anos de jornalismo – uma delas quando vi em Brasília um rapaz agredir um idoso à saída de uma área de lazer chamada Pier 21.

O rapaz tinha discutido com sua mulher na mesa de um restaurante. Ela fora embora aborrecida. Ele depois saiu atrás dela e, na altura do estacionamento pago do Pier, pensou tê-la visto entrando em um carro na companhia de um senhor.

Não hesitou: atacou o homem pelas costas. Derrubou-o. E ao cair, o homem bateu com o braço direito na quina da calçada. O braço se partiu. O rapaz montou no homem e começou a esmurrá-lo. Até que foi tirado de cima dele.

Só depois, já detido por policiais, o rapaz constatou que não era dele a mulher que entrava no carro na companhia daquele homem que jazia no chão. Era mulher do homem que ele nunca vira antes e que agredira.

Ambas as mulheres eram louras. Ambas, baixinhas. A do agressor tinha pouco mais de 20 anos de idade. A outra, pouco menos de 50. “Eu me confundi, eu me confundi”, desculpou-se o rapaz nervoso.

Ele foi levado para a 1ª Delegacia de Polícia, interrogado e solto, embora tenha sido preso em flagrante. O homem foi levado para o Hospital de Base. Em face da fratura no braço, ficaria inativo por 60 dias.

O título da reportagem publicada pelo Correio Braziliense foi “O Selvagem do Shopping”. Poderia ter sido um título neutro do tipo “Rapaz agride homem à saída do Pier 21”. Ou: “Rapaz agride homem por engano”.

Mas como qualificar o ato do rapaz senão como um ato de selvageria, e de uma selvageria absurda, sem nenhuma explicação, sem atenuante algum? E se foi um ato de selvageria por que não dizê-lo com todas as letras?

A imprensa não deve ter medo de chamar as coisas pelo seu próprio nome. Não deve ser neutra diante de fatos comprovadamente graves e sobre os quais não reste a menor dúvida. Eu vi o rapaz espancar o homem. Ninguém me contou.

Quando a Polícia Militar do Pará invadiu um acampamento de sem-terras desarmados e matou uma dezena deles, o ato foi classificado de “massacre” por quase todos os jornais. E como massacre é tratado até hoje.

Foi um crime “bárbaro” o assassinato do jornalista Tim Lopes no Rio de Janeiro. Ele foi torturado por traficantes de drogas antes de ser morto. E depois de morto, seu corpo foi esquartejado e partes dele enterradas em locais diferentes.

Bush invadiu o Iraque a pretexto de que ali havia armas de destruição em massa. A ONU não encontrara tais armas – nem vestígios delas. Elas não foram localizadas desde a invasão.

Por que seria errado publicar uma foto de Bush na capa de um jornal sob a manchete: “Ele mentiu”. E por que você não se recorda de algum jornal que tenha feito isso?

Certa vez, li o perfil do presidente francês Jacques Chirac publicado pelo jornal espanhol “El Pais”. Ali foram descritos os métodos desonestos de Chirac de se manter no poder. E ele foi comparado ao chefe de uma gangue.

Se o autor do perfil reuniu informações suficientes e confiáveis para afirmar o que afirmou por que não deveria fazê-lo? E por que o jornal não deveria publicar?

Há fatos, pois, e muitos fatos, diante dos quais a imprensa não pode e não deve ser neutra. Se for sob a desculpa de tentar ser isenta estará apenas sendo cúmplice. E desinformando ao invés de informar.

* RICARDO NOBLAT é jornalista, foi editor do jornal “Correio Braziliense”, mantém um blog que leva seu nome no globo.com

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