No ano de 1985, o Sindicato dos Músicos Profissionais do Município do Rio de Janeiro reuniu um time de celebridades artísticas em torno de um projeto para arrecadar recursos que seriam distribuídos às vítimas das severas secas em Estados do Nordeste brasileiro. Cansados da inoperância do governo federal diante do grave problema, os músicos compuseram e interpretaram uma canção que se tornou marca registrada da iniciativa, que ficou conhecida com a denominação de Nordeste Já, título que aproveitava o slogan das Diretas Já, ainda fresco na memória brasileira. O projeto surgiu na esteira de iniciativa internacional semelhante, o U.S.A. For Africa, comandada pelo astro pop Michael Jackson, que reuniu grande elenco de artistas para minorar a fome no continente africano.
A canção do projeto brasileiro se intitula Chega de Mágoa. Numa belíssima letra, fruto de tantos talentos reunidos, registram-se versos magistrais como estes: “Água, dona da vida/Ouve esta prece, tão comovida!/Chega, brinca na fonte/Desce do monte, vem como amiga!” A composição como um todo é bem sugestiva, prestando-se a um bom leque de interpretações em seus significados. O trecho em destaque, por exemplo, pode ser visto como uma cruel ironia quando confrontado com os acontecimentos da virada de ano na Ilha de Angra dos Reis, no Estado do Rio de Janeiro. O excesso de água no morro fez com que o solo cedesse, carreando para a encosta toneladas de lama, terra, rochas, árvores e toda sorte de detritos que soterraram casas, ceifando a vida e os sonhos de centenas de pessoas num terrível efeito dominó.
Aliás, já faz algum tempo que as águas, tanto em sua presença abundante quanto em sua cáustica ausência, têm enviado sinais de advertência que o homem, sobretudo aqueles que governam, insistem em ignorar. O último exemplo dessa teimosia foi a fracassada reunião sobre o clima, que reuniu em Copenhague as principais lideranças mundiais aparentemente para nada. De forma curiosa, a natureza tem chamado a atenção em datas cruciais, no momento em que grande parte da população está mais propensa a prestar atenção. Foi assim entre as festas de Natal e ano-novo de 2004, quando as tsunamis devastaram a Ásia, ceifando a vida de mais de 200 mil pessoas. Foi assim na virada de ano e nos primeiros dias de janeiro em várias regiões do Brasil, quando a força e a fúria das águas levaram a dor a diversas famílias, numa macabra democracia que não faz distinção entre ricos e pobres.
Gismair martins teixeira é mestre em Literatura pela UFG e professor
Jornal O Popular
Nenhum comentário:
Postar um comentário