A boia ainda é fria
Trabalhadores rurais lutam por alimentação de qualidade nas lavouras. Há usinas que fornecem o alimento, mas outras garantem apenas o recipiente térmico para manutenção da temperatura da comida INÃ ZOÉ
Edilson Pelikano
Mônica Oliveira (Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Edéia): “A realidade do cortador de cana continua penosa”
A vida para eles nunca foi fácil. A lida é árdua, o salário, baixo, e as oportunidades de melhoria, raras. O apelido, ganharam com o tempo, assim como a prática e as técnicas de cortar a cana. Trabalhadores rurais, os boias-frias, chamados assim por levarem para o campo suas próprias refeições (na gíria, boia) em recipientes sem isolamento térmico, ganharam visibilidade na sociedade depois de relatados casos trágicos de mortes por exaustão, situações de escravidão ou semiescravidão. Acordos foram selados, leis entraram em vigor, mas na prática o que tem sido feito para garantir os direitos desses trabalhadores está muito aquém do necessário.
Um estudo inédito realizado pelo professor doutor da Universidade de Brasília (UnB) Fernando Ferreira Carneiro tenta explicitar a realidade dos boias-frias no Brasil fazendo um comparativo com os assentados e acampados. Entre os dados mais relevantes, a constatação de que a insegurança alimentar desses trabalhadores é cerca de duas vezes superior às registradas em famílias de sem-terra e quatro vezes maior que a de pessoas assentadas. Intitulado “A saúde no Campo: das políticas oficiais à experiência do MST e de famílias boias-frias”, o estudo foi realizado na Universidade Federal de Minas Gerais e envolveu 202 famílias da cidade de Unaí.
O professor explica que a dificuldade maior, neste caso, está em não terem condições de cultivar o alimento para o próprio sustento. Para ele, este é um grupo totalmente descoberto no quesito segurança alimentar. “Os assentados, apesar dos poucos recursos, têm um pedaço de terra onde podem plantar e manter pequena criação de animais. Os boias-frias estão na cidade, encontram trabalho de seis a oito meses por ano, e ainda precisam lidar com a industrialização crescente das plantações. Além disso, ocorre de muitas vezes tentarem entrar em programas como o Bolsa Família e não conseguirem”, destaca.
Lembrando o acordo selado na convenção deste ano do setor sucroalcooleiro, Carneiro questiona o fato de não ter sido garantida alimentação para os trabalhadores rurais, sendo que cabe a cada empresa decidir oferecer ou não as refeições. Os usineiros se comprometeram apenas a proporcionar recipiente adequado para a comida, de forma que se mantenha aquecida até o horário do almoço. “O setor se diz tão moderno, mas se mostra resistente em questões como essa”, observa.
O estudo aponta ainda outra realidade historicamente negligenciada: a necessidade de reforma agrária no País. Para o pesquisador, o pouco que foi realizado de redistribuição de terra já garantiu a centenas de famílias a possibilidade de ter uma vida melhor. Esse desejo de posse, no entanto, foi detectado em apenas 3,8% das famílias entrevistadas. Quando a pergunta era: “você gostaria de mudar de profissão?”, a resposta “sim” fez parte de 90% dos questionários. Entre os principais motivos estiveram o cansaço físico, a carga horária excessiva, o tempo de deslocamento, e claro, a falta de uma boa alimentação.
Secretário de assalariados rurais da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Estado de Goiás (Fetaeg), José Maria de Lima conta que a luta pela refeição gratuita e de qualidade no campo se intensificou nos últimos seis anos. Assim como o professor Carneiro, o secretário não vê com bons olhos a posição dos empregadores em oferecer apenas o recipiente térmico vazio, enquanto a maioria dos trabalhadores não tem condições de preparar em casa uma comida reforçada e balanceada para levar para o campo. “Vejo que há, inclusive, discriminação. As indústrias são obrigadas a ceder comida para quem vem de fora do Estado, mas não atendem os que moram na cidade. Em Goiás, das 32 usinas em atividade, só 5 ou 6 garantem esse benefício.”
Apesar das dificuldades de negociação, Lima ressalta que a categoria tem, por meio de seus representantes, alcançado algumas conquistas que minimizam as dificuldades e os perigos próprios da atividade. “Há dez anos o trabalhador era transportado em carrocerias de caminhões. Com a convenção já conseguimos garantir transporte de qualidade e equipamentos de segurança”, observa. Mesmo que o contratante não forneça a alimentação e a “boia” fria seja a única alternativa, é direito do trabalhador uma hora de pausa para o almoço em lugar adequado com toldo, mesas e cadeiras.
Na prática — Na quarta-feira, 16, a reportagem do Jornal Opção foi conferir de perto qual tem sido o resultado obtido nas usinas que optaram por oferecer a refeição aos cortadores de cana. A cerca de 170 quilômetros de Goiânia a Usina Caçu Comércio e Indústria de Açúcar e Álcool, instalada no município de Vicentinópolis, desde o início deste ano adotou a política e garante almoço a cerca de 1.200 funcionários. Para surpresa da equipe, que foi acompanhada de representantes do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da cidade de Edéia, a dificuldade de acesso aos cortadores foi além da esperada.
Esbarrando em questões burocráticas, e principalmente em conflitos pessoais com as representantes da categoria, a autorização para fotografar e obter qualquer tipo de informação oficial foi logo descartada pela empresa, que a princípio havia se mostrado simpática ao tema tratado. A reportagem, que no dia anterior tinha feito um primeiro contato, no entanto, teve o cuidado de esclarecer a isenção de qualquer ligação a entidades classistas, tanto representantes dos trabalhadores quanto de empresários, de forma a deixar explícito seu compromisso único com o leitor do semanário.
Acalmados os ânimos, os repórteres foram atendidos pelo supervisor de recursos humanos David Eduardo Mariano, que fez uma retrospectiva do processo de instalação da usina, inaugurada no final de 2008, e apontou os principais cuidados tomados pela empresa em relação a seus empregados. De acordo com ele, a Caçu, que produz açúcar e álcool, conta atualmente com cerca de mil trabalhadores, 700 na lavoura, e emprega principalmente pessoas das cidades de Edéia, Vicentinópolis, Joviânia e Indiara.
Ele explica que o corte manual é feito de segunda-feira a sábado das 7 às 15h20, com três horários de intervalo — o trabalho mecanizado ocorre todos os dias e é dividido em três turnos que atendem às 24 horas. Seguindo as normas estipuladas em lei, Mariano garante que a empresa tem conseguido dar a assistência necessária aos trabalhadores, com equipamentos de segurança adequado, apoio médico, além de fornecer a alimentação. “A primeira experiência foi a de oferecer cestas básicas para que pudessem preparar em casa o alimento, mas logo vimos que não era o ideal. Optamos então pela comida quente, sob a supervisão de um nutricionista.”
A produção das marmitas é terceirizada assim como o transporte dos cortadores. A um custo de 6 reais para a empresa, os trabalhadores recebem a comida às 11 horas da manhã, cerca de 800 gramas, composta por um prato protéico, (geralmente carnes suína, bovina e aves), duas guarnições, (legumes e massas) arroz e feijão. Depois de implantada a política de oferecer este almoço, o supervisor tem notado maior satisfação no campo e já é possível falar em ganho de produtividade. “É difícil falar em retorno financeiro para a empresa antes de chegarmos ao final da safra, mas já notamos melhoras significativas”, frisa.
Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Edéia, Mônica Pereira de Oliveira afirma que mesmo com todas as negociações e os acordos que são realizados, ela observa que a realidade do cortador de cana continua penosa.
Sobre o relacionamento de empresas com sindicatos, ela destaca que geralmente é conflituoso por atenderem interesses distintos. “Nosso objetivo não é fazer tumulto, como costumam dizer, queremos apenas conversar e tentar resolver o problema.” Mônica diz que, infelizmente, não é possível acompanhar todos os trabalhadores, inclusive por questões de deslocamento, mas tem tentado fazer o possível para garantir o mínimo de apoio aos associados.
Logística — Em missão oficial à China com o governador Alcides Rodrigues, o presidente do Sindicato da Indústria de Fabricação de Álcool de Goiás (Sifaeg), André Rocha, por telefone, já em Dubai, disse ser positiva a atitude de algumas indústrias em oferecer mais este respaldo ao funcionário. Ele, porém, destaca que cabe a cada empresa estudar a viabilidade antes de tomar qualquer atitude neste sentido. “Entre as maiores dificuldades está a logística, além dos usos e costumes.” Citando a crescente mecanização do serviço e o aumento significativo no número de usinas, Rocha afirma que é necessário ouvir do empregado a melhor maneira de receber este benefício. “Diversas usinas, mesmo não oferecendo a comida quente, fornecem vale alimentação ou cestas básicas para que os trabalhadores possam prepará-la da forma que preferirem.”
Responsável técnico do setor de cultivo de cana-de-açúcar da Federação da Agricultura e Pecuária de Goiás (Faeg), Alexandro Alves dos Santos faz um alerta quanto à necessidade de qualificação de mão de obra para aqueles que pretendem se manter no setor sucroalcooleiro. Para a safra de 2009/2010 a previsão é de que 60% da colheita seja mecanizada. “Um baque em relação ao número de empregos gerados”, diz. Mesmo sendo uma representante do produtor rural, o técnico diz que a Faeg não se exime das discussões que envolvem melhores condições de trabalho para os que lidam diretamente com a terra. Entretanto, ele nota maior preocupação das unidades sindicais em lutar mais por questões ambientais do que pela figura do trabalhador.
O piso salarial não é dos mais animadores: 526 reais. O rendimento é medido por produção, o que de certa maneira força ao trabalho excessivo e exaustivo. As oportunidades estão cada vez menores ao passo que se aumenta a mecanização das lavouras e não se proporciona a qualificação da mão de obra. O Brasil se coloca como a alternativa mundial em se tratando de combustível. Representantes de Goiás vão ao Oriente para, entre outras coisas, abrir mercado para a exportação de álcool e açúcar, mas ainda se vê discussões primárias sobre a oferta de comida aos trabalhadores. Se o País e o Estado querem realmente falar em desenvolvimento, em crescimento sustentável e modernização não podem simplesmente se sustentar em discursos cheios de idealismo e marmitas quentes, mas vazias.
Barriga cheia é aliada da produtividade
A rotina começa bem cedo. Mal o ponteiro marcou 5 da manhã e a maioria deles já está de pé. Um pão com manteiga, café preto, tudo pronto para aguardar a chegada do ônibus. A lida começa às 7 horas. É preciso ser rápido, pois aqui se ganha por produção. Às 9 horas, tem 15 minutos de descanso. Às 11 o carro chega com as marmitas quentes. Arroz, feijão, carne, macarrão e verduras. Para alguns é o momento ideal para tirar uma cesta. Barriga cheia é só aguardar as 12 horas para voltar ao batente. O sol não colabora, o boné sobre a cabeça ajuda a disfarçar o calor que arde na pele.
13h30: mais 15 minutos para tomar fôlego, dar um descanso ao corpo e voltar para cortar o máximo que conseguirem até as 15h20, quando o ônibus se prepara para levar os cortadores de cana de volta para casa.
Há 15 anos trabalhando na lavoura, o baiano José Pereira Nunes, 55, veio ainda jovem para Goiás em busca de melhores condições de vida. Sua rotina assim como a dos demais companheiros é árdua e começa antes do raiar do dia. “Acordo às 5 e 20, me apronto e vou pegar o ônibus que passa às 6. É bem cedo, mas antes, quando tinha que preparar a marmita, acordava às 4 e meia”, lembra.
Satisfeito com a refeição que recebe, diz que o “tanto que mandam dá pra encher a barriga mesmo”. O amigo tratorista Ademir José Evaristo, 32, concorda com Nunes. “Sustenta bem”, resume. Ele conta que quando bate aquela fome ele recorre ao lanche que traz de casa. Perguntado se essa é uma prática frequente entre os trabalhadores, ele diz que todos são companheiros e ninguém se nega de repartir com quem não tem.
Comida balanceada — Com o apoio técnico da nutricionista Gabriela Essado, o Jornal Opção conseguiu reunir dados sobre a melhor refeição e horários adequados para alimentação dos trabalhadores rurais do setor sucroalcooleiro. De acordo com ela, o dia deve iniciar com um café da manhã bem reforçado que contenha alimentos ricos em lipídios (como castanhas, manteiga e margarina), proteínas (carnes, presunto, ovos, leite e derivados), e carboidratos (pão, bolacha e doces), configurando uma refeição balanceada.
A nutricionista destaca a importância das frutas na alimentação, ressaltando que além das fibras, possuem vitaminas e minerais. “Seria interessante que comessem uma às 9 horas e no almoço se servisse uma refeição composta por arroz, feijão, carne, verdura, muita salada e de sobremesa mais uma fruta para tentar repor a energia gasta com a atividade e evitar problemas musculares.” Gabriela nota que cuidados como estes são altamente positivos tanto para os funcionários quanto para produtores, uma vez que bem alimentados produzem melhor e com mais qualidade.
Jornal Opção
Selzy Quinta
Nenhum comentário:
Postar um comentário