sábado, 6 de junho de 2009

A coragem maior

Irapuan Costa Júnior

A mãe lhe deu um abraço. Do tamanho de uma saudade materna de 6 anos, isto é, imenso. Olhou, através das lágrimas, longamente, seu rosto crestado pelo sol do deserto, e se afastou para que o pai também o abraçasse. Este também o olhou nos olhos e viu, lá no fundo, que Fraim já não era o mesmo adolescente que ia com ele à praia. Tinha visto coisas desagradáveis, tinha visto a morte de perto, várias vezes. Isso muda um homem e lhe dá o ar grave, quase triste, que o filho ostentava agora. Sara, a irmã que deixara com 12 anos e que também o abraçava com os olhos brilhando, era agora aquela bela moça loura, a quem as sardas davam um charme ainda maior.
Fraim Cherman, de família judia carioca, terminara seu curso de Engenharia com 21 anos, em 1970. Pedira, e o pai lhe dera, permissão para passar uma temporada em um kibutz de Israel. Conhecer a pátria tradicional dos judeus, aperfeiçoar seu iídiche, de que mal pronunciava algumas palavras, e dar uma, ainda que ínfima, contribuição à consolidação da então frágil nacionalidade israelense. A contribuição viria a ser maior do que ele pensava. Jovem, destemido, além de atleta, vivera intensamente, por mais de dois anos, a vida dos kibutzin, com seu saudável trabalho ao ar livre, seus cantos de esperança no futuro, seu convívio de jovens alegres e de velhos sábios e experientes. E também o excitamento do treinamento militar obrigatório e dos perigos das escaramuças com que os árabes, ainda sentindo as feridas da Guerra dos Seis Dias, deflagravam de tempos em tempos. Os meses passavam depressa e Fraim já pensava com uma ponta de tristeza no dia da volta para o Rio de Janeiro, embora sentisse a falta dos pais e da irmã, unidas como são, milenarmente, as famílias judias. E da praia de Ipanema, com suas garotas “cheias de graça”, e seu “doce balanço, no caminho do mar”. Então, estourou a Guerra do Yon Kippur. Surpreendidos pela ofensiva egípcia, os judeus se defrontavam com a maior ameaça já feita à existência de Israel, desde a Assembleia Geral da ONU de 1947, presidida pelo brasileiro Osvaldo Aranha, que criara o Estado. Mas se mobilizaram rapidamente para a defesa enquanto aguardavam, não sem certo desespero, a ajuda dos EUA. Fraim não esperou a convocação e se apresentou como voluntário ao posto de recrutamento mais próximo. Dias depois, lutava contra os egípcios às margens do Canal de Suez, onde recebeu a única condecoração por bravura de sua unidade, não obstante lutarem nela vários veteranos. Com isso, e movido pela aventura, acabada a guerra, acabou se alistando no Exército, participou de uma tropa paraquedista especial, e nela permaneceu por quase três anos. Nessa unidade de elite, que trabalhava em consonância com o Mossad, Fraim desempenhou algumas perigosas ações de comandos, onde o risco de vida era grande. Então, o pacifismo de seu espírito carioca falou mais alto. Deu baixa e voltou. Agora estava ali, na frente dos pais e da irmã, pronto a começar nova vida. E começou. Um seu colega de farda, filho de um industrial israelense, o levara para conhecer uma fábrica da família, perto de Haifa. Faziam algo novo e revolucionário: próteses de titânio, que exportavam para o mundo todo, pois contavam entre os pouquíssimos a deter tecnologia do material e a ter um suprimento firme de minério. Fraim chegou de volta como representante da indústria para toda a América Latina. Logo prosperaram as vendas. No Brasil, e da Argentina, do Chile, os pedidos choviam. Numa ida ao Ministério da Saúde, em Brasília, conheceu Dora. Uma espécie de factótum do Ministério. Gaúcha, advogada, bonita e sobretudo competente. Como diziam seus conterrâneos, a prenda Dorinha era o “meu-santo-antoninho-onde-te-porei!” do Ministério. Tinha, além da competência, o dom da paciência e da tolerância. A todos, de dentro e de fora do Ministério, atendia com presteza, delicadeza e simpatia. Fossem importantes ou humildes. Principalmente os humildes, quase sempre maltratados pelos arrogantes funcionários federais do Brasil todo. Conhecia como ninguém a estrutura ministerial, e os ministros se renovavam, mas continuavam a pedir seus préstimos. Apolítica, devotada ao trabalho, atendia e continuava em sua função. Trabalhava muito, e, talvez por isso, não namorava ninguém. O encontro com Fraim foi fulminante para os dois. Paixão, se não à primeira vista, logo nas primeiras conversas. Casaram-se quatro meses depois, não sem uma resistência inicial do pai de Fraim, que preferia uma noiva judia. Mas que não resistiu à enorme simpatia da nora logo de saída. Viveram meses de intensa alegria. Dorinha, licenciada do Ministério, viajava com Fraim em suas andanças comerciais: Buenos Aires, Montevidéu, Santiago, Tel Aviv. Moravam no Rio. Divertiam-se. Dorinha adorava conhecer pessoas, que ficavam conquistadas por sua simpatia. Quase um ano após o casamento, uma Dorinha ansiosa e risonha aguardava em casa, em Ipanema, a volta de Fraim do trabalho. Tinha a novidade para contar: estava grávida. Foi uma festa. Que foi infinita enquanto durou.
Correram sem problemas os primeiros meses da gravidez. No quarto mês, Dorinha sentiu-se anormalmente nauseada. Enjoava muito e não ganhava mais peso como no início. Procuraram o médico, fizeram os exames pedidos, inclusive uma ultrassonografia, para revelar o sexo da criança. O médico, ginecologista carioca famoso, ligou para Fraim. Queria conversar com ele a sós, no dia seguinte. Preocupado, Fraim foi ao encontro. E teve a notícia que nunca gostaria de ter: Dorinha tinha um câncer no aparelho reprodutor. A gravidez tinha que ser interrompida para o tratamento, que seria sério. Curetagem, seguida de quimioterapia, uma segunda cirurgia e, possivelmente, radiologia. Possibilidade de cura: meio a meio. Cinquenta por cento. Era um mundo alegre e arrumado que desabava. Não precisou contar: Dorinha, perspicaz, leu em sua fisionomia a notícia, no abrir a porta. Mas, ao contrário de Fraim, não se desesperou. Serenamente, propôs uma visita conjunta ao médico, para discutirem o assunto.
– Como discutir? – perguntou Fraim.
– Não há mais discussão, só tratamento.
– Não sei. Veremos – disse Dorinha, enigmática. Marcaram nova consulta. Na consulta, além do ginecologista, estava também um oncologista.
Foi Dorinha quem abriu o assunto, sem rodeios. Fez apenas três perguntas:
– Poderia levar avante a gravidez sem prejuízo para o bebê?
Sim, mas haveria um avanço devastador da doença. O bebê nasceria são, mas ela teria poucas chances de cura. Dez por cento, se tanto.
– Existia tratamento concomitante com a gravidez sem atingir o feto?
Não. Não existia. Cada medicamento aplicado iria atingir a criança, com consequências danosas e imprevisíveis.
– Após o tratamento, com os cinquenta por cento de cura já informados, se houvesse êxito, poderia ela engravidar?
Não. Não mais teria chance de ser mãe.
– Era apenas isso que queria saber.
O que veio a seguir mostrou a Fraim que havia coragem maior que a dele, quando à noite, trocava rajadas de metralhadora nas dunas do deserto com árabes destemidos, a poucos metros de distância. E que essa coragem poderia se abrigar em criaturas aparentemente frágeis e delicadas como sua Dorinha.
Sem hesitar, com uma calma e uma determinação que não deixava margem a discussões, falando pausadamente, sem lágrimas, sem alterações em seu belo timbre de voz, Dorinha resumiu a situação e o futuro:
– Nasci para a maternidade. Se só tenho essa chance, não posso deixá-la de lado, mesmo que a consequência seja grave. Não haverá interrupção da gravidez nem qualquer tratamento para mim até o parto. Por outro lado, se vou ficar debilitada, quero todos os cuidados para que minha filha venha forte e saudável. Depois, veremos.
E ficou surda a todo argumento contrário. Não puderam forçá-la. Quando nasceu a garota, foi desde o início uma fortaleza risonha. Dorinha  acalentou a filha por quase um ano, até que faleceu. O avanço do câncer não havia deixado margem à esperança. Mas mostrava tanta alegria com a filha nos braços que parecia ter uma saúde que a palidez e a magreza negavam. Uma mãe enormemente feliz, ainda que o tempo lhe fosse avaro.
Num destes dias, andando pela Avenida Rio Branco, encontrei Fraim, que não via há pelo menos 15 anos. Com ele, a filha, Raquel. Uma moça bonita como a mãe, que repete nos gestos, na voz e no trato com as pessoas toda a simpatia de Dorinha. Continuidade da vida.

 

Irapuan Costa Junior é ex-senador

Selzy Quinta

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