Aconteceu no dia 4 de maio, aqui em São Paulo, o "2º Fórum Liberdade de Imprensa & Democracia", evento organizado pela IMPRENSA Editorial que já foi bastante comentado e divulgado aqui mesmo neste Portal. O resultado foi positivo e a frequência, alta. Mas os debates giraram em torno de dois assuntos mais latentes no ardor das ideias e práticas jornalísticas do Brasil contemporâneo: lei de imprensa e obrigatoriedade do diploma.
É necessária a construção de uma arguição mais rica em torno de matérias importantes como direito de resposta, teto indenizatório, prisão especial, qualificação profissional, ética jornalística etc. Isto é, sim, importante e merece relevância. Mas é preciso um alerta: há aspectos mais fundamentais que a materialidade da questão.
Incomoda-me um vício antigo da cultura brasileira que é a reflexão sobre a consequência e, raramente, sobre a causa. Ambas são discussões essenciais, mas diante da pressa de se resolver problemas e prestar contas é exceção o debate sobre origens. O alarde quanto à revogação da lei de imprensa - e de uma possível obrigatoriedade do diploma - me parece tropeçar no mesmíssimo ponto. Quando jornalistas, advogados, empresários e sociedade civil arregalam os olhos e bradam sobre os perigos que a falta de legislação específica pode causar no futuro, esquecem-se de observar que a interpretação, a fiscalização e a aplicação das leis constituem a principal debilidade do ultrapassado corpo jurídico brasileiro.
Nossos códigos legais e Constituição, pelo contrário, gozam de ótima reputação. São citados reiteradamente entre os mais modernos do mundo, incluindo alterações recentes que oxigenaram o arcabouço penal e civil e fizeram de nossos juristas fontes internacionais de consulta sobre teoria do direito. O nosso problema, portanto, não é a teoria, mas a prática.
Os sistemas jurídico e judiciário são falhos, corroídos como um organismo canceroso, impregnados de heranças nocivas de um passado político e social sobre o qual há pouco do que se orgulhar. Esse espólio interminável perpassou a colonização exploratória e a sociedade escravocrata e segregacionista que guiou o país na maior parte de sua história. Reforçou suas ingerências quando as autoridades brasileiras multiplicaram-se numa virose de títulos e comendas imperiais. Manteve fortes pilastras na República Velha e no tradicionalismo militar. Reuniu os piores de seus vícios durante o Estado Novo e a Ditadura Militar.
Estamos, portanto, vivendo nos últimos 20 anos nosso primeiro momento legítimo de construção da Democracia. Apesar dos breves respiros experimentados entre 1946 e 1963, não houve tempo ou realização democrática do Estado de Direito brasileiro, e o pouco que se conquistou foi logo dizimado pelo golpe das Forças Armadas.
Hoje, os três poderes não possuem uma gama de convicções ideológicas que respeitem os direitos fundamentais do cidadão, bastando a apologia afirmativa de que temos leis muito boas que os protejam. O país precisa, portanto, garantir primeiro uma reformulação plena de seus sistemas judiciário e jurídico.
Como? Não é simples, é verdade. Deve-se acabar com a corrupção na polícia e qualificar segundo critérios específicos a segurança pública federal e nos estados. É necessário prover direitos humanos básicos, tanto para quem atravessa julgamento como para o condenado, seja na valorização absoluta do princípio de inocência, seja na construção de estabelecimentos penitenciários que obedeçam minimamente os padrões internacionais. Precisa-se terminar definitivamente com o legado pernicioso do elitismo colonial, refletido hoje no nepotismo; nos benefícios parlamentares e suas gigantescas verbas de gabinete; no favorecimento jurídico aos mais abastados; na falta de acesso à representação legal decente pela população menos privilegiada; na manutenção de bolsões de coronelismo e de ingerências autoritárias distantes dos centros urbanos; e, por fim, na má formação acadêmica de advogados, juristas e magistrados, como demonstra a média.
Toda essa discussão tem raízes ainda mais profundas, que se iniciam na fragilidade do sistema educacional do Brasil. Felizmente, tanto os governos como empresas privadas têm dado sinais positivos de desejo de melhora e, excepcionalmente, de prática funcional. No entanto, ainda falta muito a ser percorrido.
Quanto à Lei de Imprensa, em nada adiantará promover uma legislação justificada na ausência de artigos específicos - o que é mentira -, mas pela fragilidade do sistema que a exige. É tapar o sol com a peneira. Manter a discussão sem sanar os reais motivos que atrasam nossa sociedade é, para usar outra metáfora consagrada, enxugar gelo. O jornalismo pode ter, sim, um código deontológico que qualifique empresas, grupos e indivíduos de forma que se construa uma esfera de respeitabilidade pública e privada. O Estado não deve e não tem que se envolver nisso; antes ele deveria olhar para o próprio umbigo, tratar de limpá-lo e imunizá-lo. No fim das contas, o que parece mais premente, antes mesmo de discutir a necessidade ou não de revogar a Lei de Imprensa, é extinguir do Brasil a Lei de Gérson.
* Igor Ribeiro, editor-executivo da revista IMPRENSA, é jornalista com passagens por diversos veículos nacionais, incluindo Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e editora Escala Educacional. veja mais
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